quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Vértice

O encontro entre todas as culturas resultaria em cultura nenhuma.
Numa fase inicial, se todas as culturas convergissem num mesmo espaço, haveria uma partilha tal que, aparte o caos que geraria, aconteceria uma absorção informativa superior à que um indivíduo suporta. Esse ponto de quebra, essa falha no suporte do indivíduo, é por onde entra e circula a informação adicional. É a criação da predisposição a nova informação e à sua absorção. A cultura desse mesmo indivíduo é, assim, corrompida. A sua cultura já não é mais da sua cultura, mas sim da de uma interferência externa cujo efeito em cadeia determina o resultado final, o indivíduo final, a mente final, a cultura final. Chegando ao topo da pirâmide, onde todas as culturas se fundem, anula-se a acção, pelo que a distinção é inexistente, a linguagem é inexistente, o ritmo é inexistente, o cheiro é inexistente, o vislumbre é inexistente, o movimento é inexistente.
O topo da pirâmide é o seu começo. É preciso sair desse vértice, que é o culminar de todas as arestas, para que se entenda alguma coisa. A mais ínfima coisa. O mais pequeno pormenor, o mais tímido detalhe. E é a partir desse detalhe ínfimo, onde não há vértice algum, que acontece a distinção. A partir dessa distinção, a partir da distância que se cria do vértice, a partir do retrocesso, da ausência da ideia de que se quer chegar ou voltar ao cume, ao vértice, nesse caminho longo, detalhado, acontece um determinado aglomerado de detalhes que se juntam em uníssono, que se distinguem de um outro qualquer aglomerado de detalhes que, por si só, é igualmente uníssono, e assim sucessivamente. Até à distância que nos separa deveras. Até ao afastamento que nos caracteriza e que tão amargamente nos obriga a não querer compreender o outro aglomerado, a outra cultura, mesmo que, visceralmente, saibamos que a distinção é vã.
Voltámos à expansão a caminho da base.
Voltámos à distância do cume.
Voltámos a não ser um vértice.



Tiago José Chaves
20/01/2016

18:24

terça-feira, 2 de junho de 2015

Não te quero dizer nada

     Que queres que te diga?
     Há dias que me irrita a diferença. Mas que queres que te diga? Não me vou levar pelas irritações. Aliás, deixo-me levar por elas, de vez em quando, mas isso não faz de mim alguém irritado. Há dias que me aborreço com tudo isto, que tenho vontade de nem sequer olhar para mais lado nenhum. Há olhos em todo lado. Olhos que parecem querer ouvir. Para quê querer dar utilidade ao que é inútil? Mas que queres que te diga? Eu não sei ao certo se será assim tão inútil. Mas aborrece-me na mesma.
     Eu olho para tudo aquilo que posso olhar. Tento ser o mais atento possível. Na maioria das vezes tento não sentir a exigência dos exigentes, porque o somos, indubitavelmente. Mas consigo ver que anda quase tudo de lupa na mão, à procura, a tentar encontrar, a encontrar, a perder de vista ou a nem sequer procurar. E o que hei-de fazer? Vejo muita gente. Gosto de estar com muitas pessoas. Não gosto de me sentir sozinho. Mas sinto-me tão sozinho como qualquer outra pessoa. E não, não tenho nenhum truque na manga ou tesouro escondido que tema roubarem. Nada disso. Só não sei o que te dizer quando há tanta coisa para falar. Só não sei por onde começar porque não vejo começo, não vejo ponta a pavio, não vejo sequer um desafio porque não há.
     Portanto, deixa-me que te diga que descanses, que te encostes para trás, que não te apoquentes agora porque estás bem aqui. Tens tempo para continuar a ver quem queres ver e ouvir o que queres ouvir. Tens tempo para discutires essas discussões que para aí vêm e para te irritares, ou outra coisa qualquer... E seres essa roda livre que sempre foste. Ninguém te está a pôr nenhum travão. Ninguém te está a querer bloquear. Isto não é uma cilada, não há esquemas. Só quero que te encostes, que te enterres onde te quiseres sentar ou deitar. Que respires bem fundo e que amoleças esses músculos.
     Mais nada.



Tiago José Chaves
03/06/2015

02:14

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Algures

     Há sítios para os quais nem sequer devíamos olhar. O seu vislumbre é incómodo.
     Há sítios que simplesmente podiam cessar de existir. Eles próprios apelam a uma estranheza que nos faz crer que somos doentes. Que somos doentios.
     Há sítios que nos querem desesperadamente. Querem-nos por não saberem ao certo o que realmente querem. Querem-nos por não terem mais que querer. É uma qualquer melodia hipnótica que ludibria por completo o mais sóbrio ser.
     Tu tiveste desses sítios.
Tu estiveste de pé neles.  
Tu deitaste-te neles. Sei que não foi singular. Sei que foram várias as vezes que neles estiveste de pé, que te deitaste. Por várias vezes, tiveste-te nesses sítios.
Enquanto te vejo por aí, sem ter qualquer necessidade de usar a minha visão, sinto-me tonto. Sinto uma vertigem, constante. Sinto uma perda de equilíbrio. Sinto-me completamente drogado, enganado. Duvido da verdade e cada vez mais desconfio de mentiras, que sei que me desequilibram, que me deixam tonto. Que me deixam bem alto, de onde olho de baixo e sinto essa vertigem constante. Sinto a presença dum colosso, ali, à minha beira. Uma sombra que se assombra a si própria.
Tenho passado por aqui inúmeras vezes. Sei quão tentadora é a dor de olhar à volta, de tentar perceber o que aqui aconteceu, de me enjoar com a tontura. Sei que a certo ponto não poderei aqui voltar, que me será negada a oportunidade de me calcar ainda mais em desgosto.
Saboroso.
Detestável.
Não estou bem aqui. Se pelo menos me sentisse só, como sei que não gostas de te sentir…
Mas será sempre inconclusivo. Sempre uma afirmação reticente. Soluçada. Amedrontada de se afirmar.
Consegues dizer-me o que realmente queres? Consegues ter consciência de quem és para ti? Consegues ver-te com alguém com quem não queres estar? Consegues continuar a viver numa farsa?
Consegues ficar aí, nesse sítio, para o qual não consigo olhar?
Consegues não te repetir ao longo da história?
Não me sinto bem, aqui, assim. O que quer que seja que a proximidade traz, é passageiro. É um engano. E ver de longe, de cá de baixo, proporciona diferentes perspectivas. Mas continua a ser incómodo.
Fico aqui, porque aqui não posso ficar melhor.
Fico aqui porque aqui não pioro.
Não me chames.


Tiago José Chaves
09/04/2015

13:55

sábado, 21 de março de 2015

Aqui

Às vezes a luz parece demasiado ténue. Todos os pontos que intersecta desvanecem secretamente. Diluem-se. Tornam-se pontos mortos.
Aqui, onde parece que estamos, a luz é demasiado ténue. É assustadoramente quieta, imutável.
No momento que nos fiz parar, aqui, pouco será aquilo com que contamos. É toda a luz demasiado ténue. São todos os pontos demasiado desvanecidos.
A quietude não é incómoda, como julgava. É simplesmente quieta, como uma ausência. Qual ausência poderia ser incómoda se não fosse notada?
Estamos precisamente aqui, onde ficámos. Onde o tempo deixa de desempenhar qualquer tipo de papel. Onde o largou por lhe ter sido ingratamente atribuído. Não podemos ser ingratos por podermos parar. Por sermos os únicos a reconhecer a ingratidão. Por sermos criadores do tempo.
Aqui, a quietude chegou em boa hora. Como um abraço dum desconhecido, teimoso, a querer mostrar-nos que lhe somos gratos. Que nos é ingrato por criarmos tal monstro.
Aqui é tudo sereno. Mas a luz continua ténue e os pontos ainda se desvanecem nela.
Compreendemos deveras onde estamos. Sabemos onde parámos e porque o fizemos. Sabemos da gratidão que nos é mútua e que o ingrato do tempo nos levou algo.
Quem ousa mexer-se aqui?


Tiago José Chaves
13/03/2015

01:28

sábado, 24 de janeiro de 2015

Nunca

Nunca poderia não ser o que não sou.
     Nunca poderia ser o que sou.
     Nunca me poderia somar por ser uma nulidade.
     Nunca poderia ser acréscimo a qualquer falta nem o excesso de qualquer exagero.
     Nunca me poderia subtrair por ser a mesma nulidade que seria se me somasse.
     Nunca me consideraria uma junção de singularidades se a minha manipulação nunca observou nada singularmente.
     Nunca me consideraria qualquer pluralidade por não conhecer singularidades.
     Nunca poderia ser qualquer diferença por ser uma completa redundância.
     Nunca poderia deixar de ser redundante se todos os eventos que me antecederam e me sucedem são cíclicos. Como qualquer ciclo, o começo é no fim e o término é o seu início. Todo o seu caminho tem o mesmo fim e é irrelevante procurar satisfação nos acontecimentos intermédios. O durante é dentro do ciclo e torna-se irrelevante por conduzir à redundância.
     Não posso querer ser qualquer diferença se o que procuro são semelhanças.
     Não me posso sentir semelhante a nada se sou redundante.
     Não me posso distinguir de nada se o que somos são ciclos.
     Não posso inventar novas redundâncias se isso implica criar novos ciclos. Qualquer ciclo seria redundante e qualquer redundância é cíclica.
     Não posso querer outro sítio porque venho parar sempre aqui.
     Não posso querer estar aqui porque não gosto deste sítio.
     Não posso ser quem sou.



Tiago José Chaves
20/01/2015
19:11

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Ventos

     Na verdade, nunca fui muito de realçar nada que me tenha acontecido como sendo deveras o que melhor vivi. No entanto, já o fiz. Já tive direito ao engano inocente de quem se engana sem saber que se enganou.
     Do mesmo modo, nunca apontei nenhuma infelicidade como se fosse a mais catastrófica de todas. Pelo menos, nenhuma que tenha permanecido como o mais infeliz evento de todos. Mas sei que já o fiz.
     Não posso deixar de achar uma comédia em todas essas afirmações que fiz. Todas. Não muitas. Algumas. Mais que uns fizeram, menos que outros. E não o fiz por me julgar mais ou menos confiante que qualquer outro indivíduo. Quero crer, como acredito, neste momento, que o fiz por julgar ser certo, para além de adequado. Para além duma espécie de organização abstracta do que ocupa o seu lugar devido.
     Sinto-me cansado. Um cansaço de estar num ponto intermédio. No meio de uma ponte. Há cansaço em mim por observar os dois extremos da ponte. O seu começo e o seu fim. Dum lado ou do outro. Sei que são dois começos e dois fins. E estou ali, no meio, sem saber para qual dos começos ou fins me dirigir. Estou completamente estagnado. Consegui com isso um descanso momentâneo para a responsabilidade inerente à decisão. Não afirmo qualquer felicidade como sendo a superior de todas as felicidades que tive. E o mesmo acontece para o seu inverso. Toda esta pacatez, a calma, que sei que senti, traz-me neste momento o arrependimento, a sensação de perda sem retrocesso ou encobrimento com o que quer que possa ser um ganho. Ganhei, na perda, mais perda. Ganhei uma acalmia, a perda dessa calma. Como se qualquer ganho assinasse uma perda.
     Rótulos.
     Esta existência, esta forma de vida, não me mostra nada. Não tenho crença que me mova e não confio na minha confiança. Será possível viver com medo à vida?
     Há falibilidade na beleza, por mais que se afirme a sua existência. Há certeza no que é certo e há corrupção nas certezas. Apenas por falta de crença no que é certo. O que estagna, assusta, deteriora-se, apodrece. O que assusta, o que se deteriora, o que apodrece, afugenta. E eu assusto-me comigo. Fujo de mim. O medo de não me ver mais é nulo. O medo de me continuar a ver assusta deveras.
     Não quero mais dificuldades. Mas desistir é fácil demais. Resistir à desistência não é difícil. Combater dificuldades, sim, é difícil. Não o quero. Sei, portanto, que permanecerei no meio desta ponte. No ponto estagnado. Não há desilusão que me faça arrepender nem ilusão que me tire daqui.
     Sei pouco com que contar.
     Conto com o vento.



Tiago José Chaves
26/11/2014

15:36

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Oco

Sinto perda.
     Se é que alguma vez houve ganho. Mas reafirmo: perco cada vez mais.
     Não quero complicar demais. As complicações são como uma silva. Basta haver uma para que facilmente se multiplique e ramifique rapidamente. Basta lembrarmo-nos que há uma complicação que agarramos com a mão, com força, um desses esguios espinhosos ramos. E nem que doa, por mais que doa, havendo sangue, se for preciso, até nos jogamos para cima delas.
     Prefiro, a sentir uma dor verdadeira. Prefiro sentir que me dói a picadela do espinho e que essa dor por pouco tempo se prolonga. Não por ser curta ou menos dolorosa, mas sinto-a deveras e sei indicar onde dói.
Prefiro essa que não se prolonga no nosso âmago como a que já tentámos agarrar com a mesma mão com que firmemente segurámos os espinhos. Prefiro, a essa que nos goza a cara por lhe sermos tão inferiores.
Parasita dor.
Qual mudança?
Qual mudança tentais vós dar-me?
Qual remédio vos convenço eu de tomar?
Qual sedativo que a pare ou morte que nos separe?
Eu vou deixá-la cá toda, ingrato como sou. Queiram-na como a quiserem, se é que a querem. E perguntem-me a verdade que defendo. Responder-vos-ei que a procurem, sendo do vosso interesse. Procurem-na com o mesmo fulgor com que a defendi, não tendo mais eu cá para defender. Procurem-na melhor que da forma que pensais agora procurá-la.
Ver-me não chega.
Abrir-me não chegará.
Ouvir-me será pouco e ler-me será ainda mais confuso. Inconclusivo. Será uma complicação.
Se vo-la descrevesse, seria com o apelido de apêndice com o qual vou vivendo. Com o qual vou morrendo, lentamente.
Morro como se soubesse o que é. Não, não sei deveras. Mas não vos falarei de viver. Sei menos ainda disso. Procurei vida, procurei gozo na felicidade que invocais, ri-me dos vossos risos e piadas e comovi-me com o que vos comove. Consegui tudo isso.
Cheguei lá.
E era vazio. Bem vazio. Bati nas paredes e só ouvi o oco que lá se multiplica. Multiplicando-se por nada.
Julgavam remediável?
Talvez seja.
Mas não hoje.



Tiago José Chaves
16/10/2014

15:52